Sabemos que a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas desempenha uma função importantíssima na economia, uma vez que incentiva a organização de empreendimentos de risco, permitindo que investidores, administradores, sócios e acionistas façam uma melhor alocação e segregação dos riscos envolvidos na atividade a ser desenvolvida.
Sem este estímulo, a produção de renda, serviços e/ou bens encontraria obstáculos, uma vez que o capital privado buscaria outras oportunidades e fontes de retorno, com menores riscos envolvidos, o que acabaria tolhendo o crescimento econômico. Isso significaria uma menor geração de empregos, de renda, de oportunidades de inovação, bem como de arrecadação de tributos.
A autonomia patrimonial implica o reconhecimento de que o patrimônio da empresa é distinto e autônomo, em relação ao patrimônio pessoal dos investidores, sócios e administradores.
A base para sustentação do princípio da autonomia patrimonial está no artigo 49-A do Código Civil, segundo o qual a pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores e administradores.
Por assim ser, ao atribuir autonomia patrimonial às pessoas jurídicas, o legislador reconheceu o enorme potencial deste instituto para a geração de frutos, os quais são aproveitados por toda a sociedade.
A personalidade jurídica das sociedades nasce no momento do registro dos respectivos documentos constitutivos no registro público competente. No caso das sociedades empresárias limitadas, o registro dos atos constitutivos ocorre na Junta Comercial do Estado onde estejam sediadas as sociedades. Já as sociedades simples têm os seus atos constitutivos registrados no competente Registro Público de Pessoas Jurídicas.
A partir do momento em que a lei atribui personalidade jurídica às sociedades, distinguindo-as de seus sócios e administradores, elas passam a deter a capacidade legal para contrair obrigações e exercer direitos, em seu próprio nome, respondendo, com seus patrimônios, por suas obrigações junto a terceiros. Credores, em geral, buscarão o ressarcimento de seus créditos junto às sociedades e não junto aos seus sócios e/ou administradores.
No entanto, esta separação patrimonial, embora necessária, não é absoluta.
Ela compreende exceções, sempre que presentes situações fáticas que justificam o "levantamento do véu" da autonomia patrimonial, eliminando a separação entre o patrimônio das sociedades e os de seus sócios e administradores.
No Brasil, diversas legislações (tais como a civil, comercial e ambiental), bem como a jurisprudência, contemplam hipóteses em que a personalidade jurídica da sociedade é desconsiderada, de forma específica, para que o patrimônio dos sócios e administradores sejam também alcançados, para satisfazer legítimos interesses de credores.
Em regra, a desconsideração da personalidade jurídica ocorre mediante situações excepcionais, tais como aquelas que resultam de fraude, simulação, dolo, prática de atos abusivos ou com desvio de finalidade, além da verificação de confusão patrimonial entre a sociedade e seus membros. Se restar comprovada a prática dos atos ilegais, os quais acabam servindo de obstáculo à satisfação do interesse legítimo de credores ou partes interessadas, haverá justificativa para a decretação, em juízo, da desconsideração da personalidade jurídica, no contexto específico.
O artigo 50 do Código Civil permite que, em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, poderá o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.
A lei considera "desvio de finalidade" a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para praticar atos ilícitos de qualquer natureza.
Já a expressão "confusão patrimonial" significa a ausência de separação de fato entre os patrimônios da empresa e dos sócios ou administradores. Esta situação pode ser caracterizada, por exemplo, pelo pagamento sistemático, pela sociedade, de obrigações pessoais do sócio ou do administrador, ou vice-versa e pela transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, salvo quando o valor envolvido for proporcionalmente insignificante.
Note, portanto, que a confusão patrimonial abarca todos aqueles eventos em que a sociedade empresária assume pagamentos particulares dos sócios, tais como a escola dos filhos, os cartões de crédito pessoais, as despesas pessoais variadas dos sócios e/ou administradores, bem como os gastos de pessoas da família, inclusive viagens de férias e festas de aniversários, entre outros exemplos.
"A menos que os sócios e administradores desejem incorrer em situações de vulnerabilidade legal, estas práticas acima devem ser evitadas, de forma irrestrita e permanente."
No campo do direito tributário, os artigos 134 e 135 do Código Tributário Nacional definem hipóteses de responsabilidade direta dos sócios e administradores por passivos fiscais da pessoa jurídica. Tais hipóteses não exigem decisão judicial acerca da desconsideração da personalidade jurídica devedora, pois a responsabilidade pessoal do sócio e do administrador decorrerá da simples aplicação da lei tributária. Caberá, nestes casos, unicamente, comprovar a ocorrência das hipóteses estabelecidas no Código Tributário Nacional, quais sejam 1) hipóteses de responsabilidade solidária ou 2) hipóteses de prática de ato ilícito ou com excesso de poderes.
Além dos casos mais óbvios de fraude ou outras ilicitudes, devemos nos atentar para situações, às vezes corriqueiras, que podem passar despercebidas por administradores e sócios, as quais, porém, também podem justificar a responsabilidade pessoal destes em relação a passivos tributários da empresa. Tais situações devem ser evitadas, com o objetivo de preservar a regra geral da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas e a segregação de riscos para investidores e administradores.
São elas:
1) A mudança de endereço da sede da empresa sem o competente registro do instrumento de alteração do contrato social nos órgãos competentes.
De acordo com a Súmula nº 435 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicílio fiscal, sem que ocorra a comunicação aos órgãos competentes (como, por exemplo, as Juntas Comerciais e as autoridades fiscais). Tal falha justificará o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente.
Além desta situação, entende-se que, no caso de mudança de endereço sem a correspondente comunicação aos órgãos públicos, o redirecionamento da execução fiscal pode ser autorizado contra o sócio e o terceiro não sócio, com poderes de administração na data em que foi configurada ou presumida a dissolução irregular, independentemente de estes terem praticado atos de gerência ou de administração quando do nascimento da obrigação tributária que for objeto da execução fiscal. O fundamento de tal entendimento repousa no artigo 135, III, do Código Tributário Nacional (CTN).
O STJ entende que a simples falta de pagamento do tributo não configura, por si só, hipótese de responsabilidade do sócio, prevista no CTN, porquanto exige a conduta ilícita, caracterizada por atos com excesso de poderes, infração à lei, ao contrato social ou ao estatuto social. Contudo, caso a empresa não seja localizada no endereço cadastrado como domicílio fiscal, haverá, por construção jurisprudencial, presunção de que houve "dissolução irregular".
Como consequência, a responsabilização do sócio gerente pela obrigação tributária que está sendo objeto de cobrança torna-se possível, independentemente da comprovação de fraude ou dolo.
Este entendimento já está sedimentado na jurisprudência do país.
2) Não formalização dos atos de liquidação da sociedade inativa (vulgarmente chamada de "empresa dormente").
Outro exemplo comum é a empresa inativa.
Conforme o artigo 981 do Código Civil, a sociedade é constituída para a realização de alguma atividade econômica.
Quando a sociedade cessa a prática de suas atividades e se torna inativa, deverá proceder à liquidação e posterior baixa de suas inscrições em todos os órgãos públicos, observando os princípios que regem a matéria. Desta forma, o não cumprimento do objetivo social, seu exaurimento ou a impossibilidade de sua prática são causas legais para a adoção dos atos de liquidação e extinção da sociedade.
Se os atos de liquidação e dissolução, na forma da lei, não são praticados, a permanência da sociedade em estado de "dormência" ou "inatividade" revelará uma anomalia, pois faltará a justificativa legal para a existência da sociedade e, por consequência, para reconhecer a sua autonomia patrimonial. Agrava-se a situação nos casos em que a sociedade inativa possui passivos fiscais pendentes.
Quando a sociedade é abandonada ou permanece em estado de inatividade, sem remanescerem bens para a garantia dos seus credores, poderá haver a responsabilidade pessoal dos sócios e administradores, pois a não adoção dos atos regulares de liquidação da empresa constituirá forte indício de sua extinção irregular. Em sentido contrário, a liquidação regular da sociedade implicaria a liquidação das dívidas fiscais em aberto, preservando e justificando sua autonomia patrimonial.
Em matéria tributária, o sócio ou administrador poderão ser responsabilizados pelos passivos fiscais pendentes, com base na dissolução irregular da empresa, desde que tenham exercido poderes de administração na sociedade no momento em que se tornou inativa, deixando de proceder à regular liquidação da sociedade.
O redirecionamento da execução fiscal com base nesse fundamento, no caso específico, exigirá prova de que os sócios administradores exerciam suas funções à época em que se deu a extinção irregular da empresa.
Desta forma, considerando os exemplos aqui mencionados, recomenda-se:
a) Atentar para a correta gestão dos cadastros públicos, mantendo-se atualizados no que diz respeito à composição societária, membros da administração, endereço e status de atividade;
b) Adotar os atos de liquidação e posterior extinção das sociedades sempre que se tornarem inativas ou com objetivos sociais exauridos ou impossíveis de serem desenvolvidos; e
c) Dar cumprimento, tempestivo, a todas as obrigações acessórias, sejam elas fiscais, trabalhistas ou previdenciárias.
Por: Ana Lúcia Alves da Costa Arduin, advogada em São Paulo, mestre em Direito Comercial e Especialista em Direito Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), membro do Instituto de Direito Societário Aplicado (IDSA) e formação em Governança Corporativa pelo IGBC e em mediação pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP).
Fonte: Revista Consultor Jurídico.